Tem de cinco e tem de vinte
- Rennan Leta
- 26 de fev. de 2019
- 2 min de leitura
Atualizado: 18 de mai. de 2021

Já era noite, a lua cortava a suave neblina e iluminava o caminhar. Lá estava eu, fadado a mais um dia naquela situação. Às vezes as condições são precárias e não tenho tempo nem para comer decentemente. Água é fundamental, pois, se faltar voz, eu não vendo é nada. Não vender nada é um problema.
Eu observo o movimento. Não posso anunciar a venda assim, de repente. Algumas pessoas me olham de volta. O clima é um pouco tenso. Como se não bastasse toda a tensão envolvida nesse negócio, ali, logo ali naquela rua; agora, logo agora, uma lâmpada de um dos postes queimou. Eu devia me sentir mais seguro com menos iluminação. As pessoas não veriam meu rosto. Nem as que comprassem, tampouco as que não.
Do nada, mesmo com a pouca iluminação, um cara repara os produtos na minha mão.
"Tá vendendo?"
"Tô sim."
"Quanto?"
"Tem de cinco e tem de vinte."
"Me dá um de vinte, por favor."
Esse, pelo visto, gosta bastante. Sem hesitar ou fazer perguntas sobre a origem do produto, levou. E do mais caro. O fato dele ter vindo até mim naquele momento e naquelas condições fez com que outras pessoas começassem a se motivar aos poucos. E eu tenho uma ideia sobre essas venda que é: quem gosta, sempre compra; quem não gosta, é porque ainda não provou. A parada é viciante. Sei que dizem por aí que "não se usa o que se vende", mas é inevitável. De tanto contato com a coisa, uma hora a gente cede. E depois deixamos de consumir só dos nossos para conhecer outros. Tem de tudo que é preço, tamanho e cor.
Chega de viajar nos pensamentos, tenho que começar a anunciar os produtos. Ficar esperando que me abordem não vai fazer eu vender o tanto que preciso. Olho para os lados, levanto brevemente os produtos e faço o anúncio: "tem de cinco e tem de vinte! Vem que não irá se arrepender!"
O olhar de alguns é de reprovação. Ouço alguns "é só mais um vagabundo".
Um casal jovem chega timidamente.
"Posso dar uma olhada?", pergunta ela.
Percebo que ele está ali por obrigação e quem realmente quer a viagem é ela.
"Pode sim, claro", respondo.
Após alguns segundos, ela afirma:
"Vamos levar, amor. Gostei, parece ser realmente bom."
E foi mais um de vinte. Tento fazer com que eles levem um de cinco também. Mas ele fala que só tem realmente vinte reais. Agradeço e eles seguem o caminho.
Após pouco mais de três horas de insistentes gritos de "tem de cinco e tem de vinte", chego à meta diária de venda e posso, enfim, ir pra casa.
Quando estou juntando tudo e contando o dinheiro para descansar, a abordagem. De longe eu já tinha visto, afinal quem não ia enxergar aquela luz vermelha da sirene no meio daquela escuridão?
"Boa noite, cidadão. Tira o que tem na mochila, por favor. Documento na mão"
"Só estou trabalhando, doutor", o tratamento é esse, mesmo ele não tendo doutorado.
"Tira o que tem na mochila e fica calado", insiste.
Com toda apreensão rotineira de uma situação assim, retiro em silêncio. Ele se espanta.
"Então era isso que você estava anunciando?"
"Sim, senhor. O livro é vinte. O menorzinho, o zine, é cinco."
Trinta segundos intermináveis de silêncio. E, pra minha surpresa, fui embora com vinte reais a mais.
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